28.5.07

Uma obra prima


Leitores, a muito eu tento colocar pra todos os que gostam de BDSM, o que é exatamente este embrólio. Sim é um grande embrólio, pois proporciona as mais variadas gamas de sensações e possibilidades. Porém, uma pessoa bacana a beça, com uma forma de escrever única, postou este texto, pra benefício de nossos cérebros, e que eu solicitei autorização para divulgar.

Aos experientes, lucidez. Aos incautos, aprendam alguma coisa com isto. Aos novatos, usem as dicas como armas ferrenhas de proteção pessoal.

Compactuo em gênero, número e grau com as colocações de Ehdge. Faço das palavras dele, as minhas, a ponto de dedicar um post inteirinho sobre esse tema tão mágico, escrito por tão sábia pessoa.

Meu beijo, moço da arte da escrita.

Justine
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Caros amigos, caras amigas

Vendo as manifestações de vocês com relação ao problema da quebra de confiança relatado por uma sub, me cabe fazer alguns comentários.
O primeiro é de solidariedade à moça, que não conheço, mas que, se de fato enfrentou esta situação (lembrem-se de que isso é internet, e nada é necessariamente o que parece ser), merece o apoio de todos nós.

O segundo é que há que se mensurar causas e conseqüências desse tipo de ocorrência - em toda sua extensão e sem medo de ofender a suscetibilidade de ninguém.
Porque esse tipo de coisa acontece? Porque, dirão os mais simplistas, elas acontecem em todos os lugares, em todas as comunidades humanas: sempre haverá os mal-intencionados, os pilantras, os sem-caráter.

Verdade.

Mas também é verdade que a postura de muitos de nós no mínimo facilita que essas coisas aconteçam, simplesmente porque, mais uma vez, misturamos nossas fantasias com a vida real. E toda vez que isso acontece, algum dano invariavelmente virá – mais cedo ou mais tarde.

Senão vejamos: há dominadores que exigem tudo – absolutamente tudo – dos submissos. Querem controlar não a fantasia, mas a vida. Exigem entrega não em um jogo erótico, mas em tudo. Já vi casos (e me manifestei contra eles) de gente oferecendo deixar o salário nas mãos de um dominador – e dominadores aceitando e, pior ainda, defendendo tal coisa.

Sim, eu sei que vocês vão dizer agora que cada caso é um caso, que há pessoas absolutamente confiáveis no meio, que esse tipo de entrega é possível e permissível e que também faz parte da fantasia da dominação e da submissão.

Pois eu digo em alto em bom som: não é. E não importa se eu (porque nesses aspectos prefiro responder apenas por mim) sou uma pessoa honesta e confiável. Nem por isso uma pessoa que se envolva comigo deve relaxar, especialmente se não me conhece, nos itens que dizem respeito à sua integridade pessoal, seja ela física, emocional ou financeira.

Quando um dominador assume e defende a exigência de uma entrega absoluta, pode estar agindo sem nenhuma intenção de dolo. Mas, inadvertidamente, está sendo conivente com os pilantras e os sem-caráter. Porque se um sub que tem pouca experiência (não apenas no nosso meio, mas na vida) vê essas ordens sendo dadas (e cumpridas), e se ele mesmo as recebe, acabará por toma-las como regra do meio.

Achará que é assim que deve ser, e que sempre devem concordar com a entrega total. E vão passar a dizer sim tanto para um dominador honesto quanto para um pulha. Sabemos que é assim, porque a sede da fantasia nos faz passar por cima de muita coisa.

É por esses e outros motivos que nunca aceitei as argumentações dos colegas quando o assunto é a entrega fora do contexto BDSM. É por isso que nunca acreditei em entregas completas e absolutas fora do contexto da cena, porque essas entregas pressupõem um total relaxamento das regras de segurança individual do sub. Não aceito misturar fantasia com vida real, porque é algo que considero extremamente perigoso. Não acredito em abrir brechas como essa moça abriu, permitindo ter suas imagens capturadas, por ordem ou desejo de um dominador. Pode ser que ela nem soubesse que as imagens estariam sendo gravadas e arquivadas. Isso não a isenta de sua própria parcela de responsabilidade – mas tampouco nos isenta da nossa.

Porque se um dominador exigisse claramente fotografar uma sessão com seu sub, como "prova de submissão", quantos submissos aqui, honestamente, diriam não? E quantos dominadores alertariam para que o sub não fizesse isso? Quantos questionariam o dominador que fez a exigência? Quantos saberiam respeitar os limites não do BDSM, mas da realidade, do bom-senso?

Tenho certeza que muito poucos. Porque essa postura infeliz de exigências descabidas está tão arraigada entre nós, e há tanto tempo, que quase se solidificou como uma regra absoluta. Achamos "normal" que elas sejam feitas. Achamos que é "direito" do dominador faze-las, e "dever" do sub cumpri-las. Aos poucos, fomos (e continuamos) perdendo nossa capacidade de crítica, de análise desapaixonada dos riscos, porque nos acreditamos acima do bem e do mal. Deixamos que nossos personagens sobrepujassem nossas pessoas. Perdemos o chão da realidade – achamos mesmo que somos dominadores o tempo todo, que temos direito de exigir o que quisermos, e não apenas dentro de uma cena.

Não interessa que o sub concorde com isso. Não se trata de ser algo consensual ou não - trata-se de algo fora dos limites de segurança, e segurança real, não do BDSM. Ora, daí a acontecer uma coisa mais séria é apenas um passo – e um passo que, como estamos vendo, há quem esteja disposto a dar.

O que dizemos defender? Que as pessoas pratiquem um BDSM mais seguro?

Mas como podemos sustentar isso ao mesmo tempo em que, arrogantemente, dizemos que nós, dominadores, é que sabemos o que é seguro? Queremos evitar a ação de pessoas mal-intencionadas? Mas como fazer isso, se defendemos o tempo todo que o dominador tem o direito de fazer o que bem entender com o sub, negar o que quiser, conceder o que quiser – abrindo assim o campo para que essas pessoas mal-intencionadas usem isso como argumento para obter aquilo que querem sem o menor esforço?

Como é que podemos nos eximir da culpa de estarmos, todos, confundindo a cabeça dos submissos, especialmente dos mais inexperientes, dizendo a eles para ter cuidado, e ao mesmo tempo para obedecer cegamente a um dominador?

Eu, que sempre fui contra essas posturas de dominação total, me sinto responsável pelas vítimas dos pilantras que pululam por aqui como em todos os lugares. Muito mais deveriam sentir-se aqueles que defendem essas posturas.

E não adianta ficar repetindo o mantra do "eu sou honesto, eu sou confiável, comigo isso não aconteceria" (mantra adaptado pelos subs como "meu mestre é honesto, confiável e jamais faria isso comito").

Eu não estou questionando ninguém quanto à sua honestidade ou confiabilidade. Mas estou questionando a todos pelas suas posturas.
Você tem um submisso há vinte anos, numa relação solidificada em confiança mútua total? Ótimo para você e para o submisso – mas por favor, não se citem como regra – vocês são a exceção.

Vivemos num mundo real. A internet é uma interface desse mundo, e ela não tem filtros contra pessoas mal-intencionadas. Insisto: vocês não são a regra. Vocês podem e devem falar de sua relação, até para que ela sirva de exemplo a ser seguido. Mas não têm o direito de presumir que todos terão a mesma sorte – a grande maioria de fato não tem.

Vocês não devem se esquecer de orientar nos cuidados pelo fato de há muito tempo não precisarem mais deles. Vocês não devem dar orientações erradas, pregando que os subs só serão felizes se obedecerem cegamente e se negarem enquanto pessoas.
Vocês não têm esse direito. Ninguém tem.

Se sua relação deu certo, não quer dizer que a dos outros vai dar. Se você é honesto e confiável, nem todos são. Se você tem coerência e sabedoria para exigir que seu sub cumpra suas ordens sem questionar, nem todos tem tal coerência e sabedoria. Se você jamais usaria seu poder sobre um sub para explora-lo ou prejudica-lo, há outros que o farão sem pestanejar na primeira oportunidade.

Não generalizem. Não confundam. Não apóiem posturas que misturam a fantasia com a vida real. Se não aprendermos a fazer isso, se não revertemos essa postura perigosa que foi assumida e continua sendo defendida por muitos membros, então vamos continuar dando nosso apoio tácito aos canalhas. Vamos continuar facilitando a vida deles. Vamos ser responsáveis, sim, pelo que de ruim advier de tal postura.

Será que nossa arrogância nos tornou tão cegos a ponto de não vermos mais isso?
Praticar BDSM é e tem de ser um exercício diário de cautela. Temos de ter cautela com o que fazemos na cena. Temos de ter cautela com quem fazemos a cena. Temos de ter cautela em separar a cena do nosso dia-a-dia. Mesmo o mais experiente de nós tem de ter a humildade e o bom-senso de agir como o maior de todos os novatos quando a questão é um novo relacionamento.

Ter experiência como dominador ou como sub não isenta nem uns nem outros dessa postura. Não existe instinto, nem aparência, nem conversas ao pé do ouvido que substituam uma exaustiva checagem sobre o outro, uma profunda avaliação dele, uma série de salvaguardas antes que se comece a desenvolver uma relação.
Termino com dois apelos.

Aos subs, que aprendam que têm o direito de dizer não. Que não precisam jamais ir além da cena para provar sua submissão. Que são pessoas, e enquanto pessoas, possuem áreas em suas vidas que são indevassáveis sob quaisquer argumentos – quanto mais por um argumento de fantasia como é o BDSM. Aprendam a se salvaguardar, a se proteger, a não cair em armadilhas para cumprir ordens de um "mestre" cujo poder não pode nunca ir além daquilo que comprometa, sob qualquer aspecto, sua privacidade, seu bem-estar e sua saúde.

Aos dominadores, peço que não se deixem levar pelo seu papel. Não façam exigências descabidas e nem manifestem apoio quando elas forem feitas por outros. Não comprometam seus subs e, principalmente, não confundam os mais novos. Respeitem os submissos enquanto pessoas que eles são. Assumam o título de "mestres", mas no sentido de orientar, de ensinar e de proteger – não no de exigir e de se ofender quando receberem um questionamento ou uma recusa no cumprimento de uma ordem. Saibam ouvir tanto quanto sabem comandar.

E me desculpem pelo tamanho do texto, mas o assunto, para mim, é muito caro e extremamente importante.

Edgeh
Maio 2007

(não sei o autor(a) da foto, mas deixo aqui os "copirights" devidos.)

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito lúcido mesmo. Também gostei muito deste texto!